quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A Cor Púrpura: Análise Reflexiva

O filme “A Cor Púrpura” tem de plano de fundo temas como o machismo, o patriarcalismo, os laços de amizade e de amor, a fraternidade, o desamor, as carências educacionais e o racismo para com as mulheres e o racismo para com os negros, características típicas de um período da história da região sul dos Estados Unidos do século XX. Esta região se caracterizava por ser latifundiária, aristocrata e escravagista, mais pobre, improdutiva e menos desenvolvida do que a região norte do país, em parte decorrente do tipo de mentalidade dos proprietários sulistas, que investiam na aquisição de escravos muito por uma questão de prestígio social, numa sociedade dominada por plantadores. A história conta sobre a vida de Celie, jovem negra americana, que, tendo sido estuprada pelo pai, teve dois filhos, e deles foi cruelmente separada. O romance se desenrola a partir da exposição das cartas que Celie escrevia para Deus e para Nettie, sua irmã que era missionária na África, a única pessoa com quem tinha sido feliz e nutria afeto, e do passar das estações do ano. Celie foi dada em casamento para um senhor viúvo, Albert, que tinha três filhos, e que a tratava rudemente como uma escrava, algo que queria quando se casou com ela, e os filhos ficaram sob a tutela de sua irmã. Nettie, após vir visitar Celie no novo endereço e ficar para passar uma temporada, é assediada por Albert, e conseguindo rejeitá-lo, sofre a conseqüência de ser expulsa brutalmente da casa. É nesse espaço de tempo que Nettie ensina a Celie, até então semi-analfabeta, a escrever, para que pudessem se comunicar posteriormente, quando estivessem longe. Sua irmã passa a escrever-lhe frequentemente cartas que Celie não chega a receber tão cedo porque eram confiscadas por Albert. Nettie segue nos ensinamentos tanto à sua irmã como aos alunos que tinha enquanto estava na África com um padrão de aprendizagem empirista-associacionista. Afastada da irmã pela segunda vez e apanhando constantemente, Celie foi se tornando uma pessoa cada vez mais introspectiva e calada, trabalhando arduamente e falando muito pouco, tendo sido esta uma forma de aprender a lidar com a situação imposta. Até que seu marido leva para casa uma amante adoentada, Shug Avery, para que Celie cuide dela. Shug era uma sensual cantora de blues, gozava de uma liberdade não peculiar aos padrões da época para as mulheres e era dona de uma vida cheia de experiências. Foi então que a vida de Celie começou a mudar, pois é com Shug que ela tem um maior envolvimento emocional desde sua irmã, e, juntamente à amizade com a esposa de um enteado, Sofia, pouco a pouco toma conhecimento do seu potencial, inclusive quanto mulher, e do mundo ao seu redor.
A cor púrpura é a cor das flores que cobrem os campos das propriedades rurais da Geórgia, nos Estados Unidos, cenário em que se passa o romance. Mas, além disso, representa também simbolicamente a cor dos hematomas e pancadas na pele. Apesar da forte presença da dor física, é a dor em forma de sofrimento que ganha o maior destaque no filme. O sofrimento é a dor intercedida pelas injustiças sociais, e é o sofrimento ético-político provocado pela exclusão social de gênero, classe e raça, que protagoniza, na pele de Celie, o romance. De acordo com Sawaia, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Este tipo de sofrimento impede o desenvolvimento do potencial humano devido às circunstâncias em que geralmente está inserido, fato que é observado em Celie. Imersa em um ambiente de opressão extrema, ela se torna cada vez mais introspectiva e impedida de se desenvolver nos aspectos sociais, financeiros, emocionais, culturais e morais. Na situação em que se encontrava, a preocupação de Celie era voltada para o processo de aprendizagem de como continuar lidando com tal conjuntura para sair da forma mais ilesa possível. É aproveitando a deixa da partida de Shug, o seu maior exemplo de pessoa e de mulher, que toma, pela primeira vez, a iniciativa de partir da prisão domiciliar em que vivia com Albert.
Celie era uma personagem que teve sua vida mutilada por angústias e repressões. A começar por ter sido violentada, estuprada pelo pai e tido com ele filhos, pôde desenvolver uma personalidade desviante e conturbada. Teve uma vida miserável, de perdas de amores, decepções e tristezas, dentro de um ambiente muito propício para agravar tais características. Não se destacam com clareza personagens caracterizados como “seres humanos genéricos”, preocupados com questões universais e indignados com as injustiças do mundo, a maioria sendo “seres humanos particulares”, que se preocupam apenas com os interesses próprios. Sua introspecção era alimentada pela falta de oportunidade de falar e se expressar, de todas as maneiras, e pelas agressões, em especial as verbais, que sofria de seu senhor, Albert. Ouvia constantemente dele que era feia, desengonçada, pobre e negra, ainda quando era comparada a sua amante, Shug, e que por isso devia se resignar com a vida que tinha. Albert nutria amor por Shug, diferente do sentimento que sentia de autoritarismo e senhorio para com Celie, e a tratava muito bem. Posteriormente, ao final do filme, pode-se entender que o motivo vinha, em parte, do autoritarismo que a própria Shug exercia para com ele e a forma como não deixava se submeter e ser dominada, ao contrário da passividade de Celie, que uma vez que tenta a mesma postura, obtém certo êxito.
As afirmações rudes que Albert fazia para Celie eram suficientes para mantê-la dentro de uma potência de padecer, num estado de servidão. Com a auto-estima arrasada e sem compreender o próprio potencial, é com o aparecimento e envolvimento com a cantora de blues que descobre o seu poder interior. Shug a mostra o quanto é bonita, forte e que ainda podia sorrir, diante de tudo, e que, acima disso, não precisava continuar a achar que apenas Shug era o exemplo de mulher feliz, bela e vitoriosa. Celie é dotada, então, de uma potência de ação que acumula durante anos até culminar na sua revolta, apimentada pela volta de Shug à casa, enchendo-lhe de poder e maior esperança, e pelo sofrimento de ver o estado em que tinha chegado sua amiga Sofia, quando também volta para casa após tantos anos de prisão. A personagem de Sofia, por sua vez, protagoniza grande momento de injustiça social. Em um episódio onde tenta afirmar a sua postura malcriada rebatendo outra de uma senhora branca que a desafiou (indagando se ela gostaria de ser sua empregada) acaba agredindo-a e, acrescentando enormemente o fator de ser negra, vai presa, onde é espancada e repreendida constantemente, e ainda cumpre uma pena de ser a empregada desejada por Millie. Apesar de estar presente em toda a película, o preconceito se apresenta de forma mais gritante nessa cena de injustiça social e num outro momento, quando negros parentes e relativos à Sofia tentam ajudar Mille com problemas no carro e ela pensa que eles a estão agredindo, entrando em pânico, exclamando o quanto não merecia ser abusada por homens de cor (termo usado em todo o filme pelos brancos para se referirem aos negros) por sempre lhes terem sido gentil.
O contexto histórico explica a razão do preconceito, patriarcalismo e mentalidade revelados no romance. Trata-se de uma época em que o racismo e o preconceito, – e todas as formas em que se apresenta no filme – em especial para com a mulher, não era impune. Então, o fato de ser mulher e negra agravava a situação de submissão. A produção da violência para com as mulheres pelos homens não era vista como crime ou algo passível de ser punido, na verdade, era algo compreendido e julgado necessário: a mulher estava numa posição de submissão em relação ao seu senhor, esposo, para servi-lo, e nela devia permanecer, e antes de tudo aceitar isso.

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