O filme “Sociedade dos Poetas Mortos” mostra claramente o papel de aparelho ideológico que a escola assumia antigamente. O que percebemos, no entanto, é que a atualidade educacional ainda partilha do mesmo dogmatismo e a tradicionalismo características das metodologias escolares antigas e da abordagem tradicional de aprendizagem. Na Welton Academy, considerada o “padrão” de escola da época, o lema de tradição, ordem e disciplina era usado no sentido de oprimir a expressão e a valorização do pensamento livre. O diretor do colégio, no início do filme, deixa claro para os novos alunos que eles estão tendo uma oportunidade ímpar, pois estudar naquela instituição era privilégio de poucos. O tipo de escola mostrada no filme é a de uma instituição tradicional, com metodologia tradicional, esfacelada e com professores igualmente tradicionais, desatualizados, incompreensíveis e, acima de tudo, acomodados e resignados ao próprio sistema em que estavam imersos. O ambiente físico da escola é austero para que o aluno não se distraia. Não era permitido ao professor experimentar novas formas de ensino, nem transmitir pareceres que confrontassem a visão explicitada no livro didático e que era seguida pela instituição. Já o estudante, não podia acrescentar opiniões e nem mesmo incorporar ao conteúdo o seu próprio conhecimento de mundo. O aluno era um receptor passivo, ouvinte, a quem era apresentado os resultados do processo de ensino para serem armazenados na inteligência e para que esse conteúdo fosse imitado posteriormente, e o professor, considerando que, na concepção tradicional o homem é acabado e “pronto”, capacitado, deveria transmitir os modelos e as informações que eram pré-estabelecidas para os alunos; a educação era tida como produto do processo de ensino. O tipo de relação social estabelecido nessa concepção de escola é vertical, do professor para o aluno.
De acordo com Mizukami, o diploma pode ser entendido como um instrumento da hierarquização dos indivíduos num contexto social (Mizukami, 1986). Esse contexto é o contexto do modo de produção capitalista, onde predomina uma escola com características padronizadas que formam certas áreas do conhecimento e da produção humana. O conhecimento é um recurso social escasso, que o capitalismo moderno democratiza em alguma mediada. A elite capitalista sempre esteve ciente da importância da qualidade da educação no meio da dinâmica do mercado e das funções sociais a serem exercidas. O diploma desempenhava a importância de um papel de mediador entre a formação cultural e o exercício de funções sociais determinadas. Esse era o aparato ideológico que movia os pais dos estudantes, como pode ser exemplificado mais explicitamente na figura opressora do pai do aluno Neil.
O novo professor contratado pela escola, ex-aluno dela, o visionário John Keating, tem a noção de como funcionava os pilares e tradições da escola e sabia que esta formava indivíduos estereotipados, automáticos, e que aquela metodologia não facilitava a transferência da aprendizagem, visto que ignorava as diferenças individuais dos estudantes. Ele tenta então libertar e incentivar seus alunos a tecerem seu próprio conhecimento, deixando de lado a preocupação em quantizar as noções e conceitos das aulas expositivas do latim, química e literatura, fazendo-os refletir e mostrando que a poesia é algo muito maior do que uma simples fórmula sistemática que representa ao quadro (é quando manda rasgar a introdução tida como incompreensível do livro). O professor tradicional continua o trabalho mesmo sem a compreensão do aluno. Keating, por sua vez, estimula os alunos da escola para que percebam que devem ser sujeitos de sua aprendizagem e não apenas objeto dela. Dá início a uma forma de ensino baseada em princípios construtivistas, nos quais o processo de construção do conhecimento se constitui pela interação do indivíduo com o meio físico e social, onde o indivíduo é ativo e responde aos estímulos desses meios externos que agem sobre eles para construir e organizar o seu próprio conhecimento. Os diversos poemas apresentados e as diferenciadas formas de interpretação que Keating os dava, fazia com que os textos tivessem vida, o que facilitava o processo ensino-aprendizagem. Tal metodologia fazia das aulas dinâmicas e participativas.
Outra forma de aprendizagem é explicitada no filme e na chegada do professor, que traz consigo uma frase muito usual no filme: “carpe diem”, a de aproveitar o dia, a vida. Saber viver é o maior dos aprendizados. “Aproveitem suas vidas” passou a ser como uma regra de ouro a partir de então para alguns dos alunos, principalmente após verem o exemplo daqueles que já estiveram por lá (retratados nas fotografias esmaecidas, amareladas, observadas no início da trama) e viveram vidas regradas, monótonas e sem descobertas e graças.
Uma vez conscientes de que estão capacitados para seguir uma ideologia própria, os alunos percebem a opressão da instituição escolar e a massificação promovida por sua filosofia de ensino e partem para uma nova aventura, energizada pelos sentimentos à flor da pele que puderam ser libertados a partir das ideologias do professor visionário: a reabertura da Sociedade dos Poetas Mortos. Os alunos de Keating, ao tomarem conhecimento da história e dos mistérios que envolviam a Sociedade da qual o professor fez parte quando estudou no colégio, desejaram conhecer um pouco mais sobre o assunto. Aprenderam então, vivendo profundamente “a essência da vida”, que palavras e idéias podem mudar o mundo. As reuniões para lerem poesias famosas, apresentarem as poesias que os próprios garotos escreviam e também com intuito de chamar a atenção das garotas, fortalecem os espíritos jovens que pareciam, antes, adormecidos e alimenta a paixão pela literatura, pela sede de conhecimento e aprendizagem e pela abertura de horizontes e mundos. Para fazer com que suas existências tivessem valor, deveriam viver com intensidade cada dia que lhes é dado, cada momento que lhes é concedido. Vemos no filme a luta de Neil, que deseja ser ator e foi tolhido pelo pai – que o oprimia por projetar nele a imagem de futuro cidadão bem-sucedido –, o que o faz tirar a própria vida, pois, até aquele momento, segundo o que deixará escrito, “não havia aprendido a viver”.
Na concepção tradicional, o adolescente é um adulto em miniatura, rejeitando o fato de que são, na verdade, adultos em formação, que alimentam sonhos e fantasias e que necessitam de apoio e orientação. Porém, Mizukami argumenta que os elementos da vida emocional e afetiva são reprimidos, nessa concepção do processo de ensino-aprendizagem, por se julgarem impeditivos de uma boa e útil direção do trabalho de ensino. A Sociedade e os fazeres do professor, e o espírito que emanou deles, são responsáveis pelas grandes conquistas vivenciadas pelos estudantes daquele momento em diante, inclusive no plano emocional, suprindo carências passadas. Servem para encorajar as vontades e vocações antes reprimidas. Neil deixa de lado a visão de estudar muito para se tornar doutor e torna-se um bom ator, Todd aprende a eliminar a fobia que tinha de falar em público e ganha, gradualmente, auto-confiança, Knox, insistente e auto-confiante, dá significativos passos na direção da conquista da garota por quem era apaixonado, dentre outros. A Sociedade, por meio da inclusão na arte, os transformou em seres passionais e pensantes. Através da arte, Keating conseguir despertar a sensibilidade que repousava dentro de cada aluno oprimido pela ortodoxia da instituição. Os fez perceber que não eram apenas razão, mas também sentimentos, e que a vida precisa ser vivida intensamente, aproveitando um dia de cada vez. Através dela, Keating os fez expressarem-se e rirem, porque o riso faz bem a saúde e a própria filosofia de vida.
A metodologia utilizada por Keating foi muito questionada pelos outros professores, uma vez que desagradava profundamente a direção da escola, que buscava um forma para punir o professor inovador. John é acusado de trabalhar com “métodos nada ortodoxos em sua aula”, o que apresenta uma afronta aos princípios tradicionais e axiomáticos da instituição. “O currículo aqui é fixo. Está provado que funciona”, diz o diretor, visto que acredita implicitamente nas virtudes formativas das disciplinas do currículo (Mizukami, 1986), mantendo as bases imutáveis do sistema educacional inflexível que temos até hoje. Por fim, o filme é uma grande reflexão sobre a prática pedagógica e a forma como apesar de ser tão antiga, ainda se mantém muito atual, e sobre que tipo de cidadão se quer ajudar a formar: um cidadão alienado e restrito ou um ser humano participativo, dinâmico, que consegue não apenas se perceber no mundo como interagir criticamente com ele.
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
A Cor Púrpura: Análise Reflexiva
O filme “A Cor Púrpura” tem de plano de fundo temas como o machismo, o patriarcalismo, os laços de amizade e de amor, a fraternidade, o desamor, as carências educacionais e o racismo para com as mulheres e o racismo para com os negros, características típicas de um período da história da região sul dos Estados Unidos do século XX. Esta região se caracterizava por ser latifundiária, aristocrata e escravagista, mais pobre, improdutiva e menos desenvolvida do que a região norte do país, em parte decorrente do tipo de mentalidade dos proprietários sulistas, que investiam na aquisição de escravos muito por uma questão de prestígio social, numa sociedade dominada por plantadores. A história conta sobre a vida de Celie, jovem negra americana, que, tendo sido estuprada pelo pai, teve dois filhos, e deles foi cruelmente separada. O romance se desenrola a partir da exposição das cartas que Celie escrevia para Deus e para Nettie, sua irmã que era missionária na África, a única pessoa com quem tinha sido feliz e nutria afeto, e do passar das estações do ano. Celie foi dada em casamento para um senhor viúvo, Albert, que tinha três filhos, e que a tratava rudemente como uma escrava, algo que queria quando se casou com ela, e os filhos ficaram sob a tutela de sua irmã. Nettie, após vir visitar Celie no novo endereço e ficar para passar uma temporada, é assediada por Albert, e conseguindo rejeitá-lo, sofre a conseqüência de ser expulsa brutalmente da casa. É nesse espaço de tempo que Nettie ensina a Celie, até então semi-analfabeta, a escrever, para que pudessem se comunicar posteriormente, quando estivessem longe. Sua irmã passa a escrever-lhe frequentemente cartas que Celie não chega a receber tão cedo porque eram confiscadas por Albert. Nettie segue nos ensinamentos tanto à sua irmã como aos alunos que tinha enquanto estava na África com um padrão de aprendizagem empirista-associacionista. Afastada da irmã pela segunda vez e apanhando constantemente, Celie foi se tornando uma pessoa cada vez mais introspectiva e calada, trabalhando arduamente e falando muito pouco, tendo sido esta uma forma de aprender a lidar com a situação imposta. Até que seu marido leva para casa uma amante adoentada, Shug Avery, para que Celie cuide dela. Shug era uma sensual cantora de blues, gozava de uma liberdade não peculiar aos padrões da época para as mulheres e era dona de uma vida cheia de experiências. Foi então que a vida de Celie começou a mudar, pois é com Shug que ela tem um maior envolvimento emocional desde sua irmã, e, juntamente à amizade com a esposa de um enteado, Sofia, pouco a pouco toma conhecimento do seu potencial, inclusive quanto mulher, e do mundo ao seu redor.
A cor púrpura é a cor das flores que cobrem os campos das propriedades rurais da Geórgia, nos Estados Unidos, cenário em que se passa o romance. Mas, além disso, representa também simbolicamente a cor dos hematomas e pancadas na pele. Apesar da forte presença da dor física, é a dor em forma de sofrimento que ganha o maior destaque no filme. O sofrimento é a dor intercedida pelas injustiças sociais, e é o sofrimento ético-político provocado pela exclusão social de gênero, classe e raça, que protagoniza, na pele de Celie, o romance. De acordo com Sawaia, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Este tipo de sofrimento impede o desenvolvimento do potencial humano devido às circunstâncias em que geralmente está inserido, fato que é observado em Celie. Imersa em um ambiente de opressão extrema, ela se torna cada vez mais introspectiva e impedida de se desenvolver nos aspectos sociais, financeiros, emocionais, culturais e morais. Na situação em que se encontrava, a preocupação de Celie era voltada para o processo de aprendizagem de como continuar lidando com tal conjuntura para sair da forma mais ilesa possível. É aproveitando a deixa da partida de Shug, o seu maior exemplo de pessoa e de mulher, que toma, pela primeira vez, a iniciativa de partir da prisão domiciliar em que vivia com Albert.
Celie era uma personagem que teve sua vida mutilada por angústias e repressões. A começar por ter sido violentada, estuprada pelo pai e tido com ele filhos, pôde desenvolver uma personalidade desviante e conturbada. Teve uma vida miserável, de perdas de amores, decepções e tristezas, dentro de um ambiente muito propício para agravar tais características. Não se destacam com clareza personagens caracterizados como “seres humanos genéricos”, preocupados com questões universais e indignados com as injustiças do mundo, a maioria sendo “seres humanos particulares”, que se preocupam apenas com os interesses próprios. Sua introspecção era alimentada pela falta de oportunidade de falar e se expressar, de todas as maneiras, e pelas agressões, em especial as verbais, que sofria de seu senhor, Albert. Ouvia constantemente dele que era feia, desengonçada, pobre e negra, ainda quando era comparada a sua amante, Shug, e que por isso devia se resignar com a vida que tinha. Albert nutria amor por Shug, diferente do sentimento que sentia de autoritarismo e senhorio para com Celie, e a tratava muito bem. Posteriormente, ao final do filme, pode-se entender que o motivo vinha, em parte, do autoritarismo que a própria Shug exercia para com ele e a forma como não deixava se submeter e ser dominada, ao contrário da passividade de Celie, que uma vez que tenta a mesma postura, obtém certo êxito.
As afirmações rudes que Albert fazia para Celie eram suficientes para mantê-la dentro de uma potência de padecer, num estado de servidão. Com a auto-estima arrasada e sem compreender o próprio potencial, é com o aparecimento e envolvimento com a cantora de blues que descobre o seu poder interior. Shug a mostra o quanto é bonita, forte e que ainda podia sorrir, diante de tudo, e que, acima disso, não precisava continuar a achar que apenas Shug era o exemplo de mulher feliz, bela e vitoriosa. Celie é dotada, então, de uma potência de ação que acumula durante anos até culminar na sua revolta, apimentada pela volta de Shug à casa, enchendo-lhe de poder e maior esperança, e pelo sofrimento de ver o estado em que tinha chegado sua amiga Sofia, quando também volta para casa após tantos anos de prisão. A personagem de Sofia, por sua vez, protagoniza grande momento de injustiça social. Em um episódio onde tenta afirmar a sua postura malcriada rebatendo outra de uma senhora branca que a desafiou (indagando se ela gostaria de ser sua empregada) acaba agredindo-a e, acrescentando enormemente o fator de ser negra, vai presa, onde é espancada e repreendida constantemente, e ainda cumpre uma pena de ser a empregada desejada por Millie. Apesar de estar presente em toda a película, o preconceito se apresenta de forma mais gritante nessa cena de injustiça social e num outro momento, quando negros parentes e relativos à Sofia tentam ajudar Mille com problemas no carro e ela pensa que eles a estão agredindo, entrando em pânico, exclamando o quanto não merecia ser abusada por homens de cor (termo usado em todo o filme pelos brancos para se referirem aos negros) por sempre lhes terem sido gentil.
O contexto histórico explica a razão do preconceito, patriarcalismo e mentalidade revelados no romance. Trata-se de uma época em que o racismo e o preconceito, – e todas as formas em que se apresenta no filme – em especial para com a mulher, não era impune. Então, o fato de ser mulher e negra agravava a situação de submissão. A produção da violência para com as mulheres pelos homens não era vista como crime ou algo passível de ser punido, na verdade, era algo compreendido e julgado necessário: a mulher estava numa posição de submissão em relação ao seu senhor, esposo, para servi-lo, e nela devia permanecer, e antes de tudo aceitar isso.
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